21 de agosto de 2014

Uma hora no Atelier de António Soares

Rio de Janeiro, 30 de Maio de 1931




Ora aqui tem, a minha amável leitora e o hirsuto crítico de café, o pintor António Soares em pantufas. Entremos devagarinho, porque o artista trabalha.
Não façamos bulha. Quanto aos paradoxos, às falsas ideias de requinte e à incoerência do que é costume chamar modernismo, é bom deixar tudo isso à porta, ao tocarmos a aldabra deste 4º andar da Rua do Salitre, onde António Soares pinta e medita.
É necessário fazer esta prevenção, porque o artista, em sua casa, é completamente diferente desse estridente figurino de ilustrador da moda, e pintor bizarro da frivolidade mundana.
António Soares na intimidade do seu “atelier” dá-nos a impressão de um anacoreta de côr. O seu “robe”, parece um hábito, e os pincéis, a paleta, e alguns volumes, sobre a antiguidade clássica, de mistura com os mais ousados ploblemas da investigação contemporânea, lembram-nos as peças necessárias ao ritual de um culto celebrado com a mais escrupulosa severidade.
Vive-se aqui, uma atmosfera de intensa cultura e recolhimento.
António Soares, fino observador de expressões, procura destruir esta impressão de austeridade e graciosamente, conta:
– Como está vendo, não estou num “atelier”. Aproveitei é certo, a luz desta sala, mas não foi a luz que me obrigou a trazer para aqui o cavalete.
– Então?
– Foi um aguaceiro. Chovia em casa como na rua. Esta sala foi vítima de uma inundação. Para salvar os móveis, mudei-os. A sala ficou deserta, e aqui tem a história da improvisação deste… “atelier”.
Rimos. Olho o quadro em que o artista está trabalhando e deixo escapar esta interrogação:
– Quem é esse doutor da Igreja, que você (está) tratando com tão justa elevação?
António Soares, sorri. Eu encaro mais o rosto da figura e reconheço, nela, num solene perfil, uma magnífica expressão de Camões. O cantor da Raça, está ali, fixado num esplendor de iluminação profética. Não é um poeta nem um soldado. É um guerreiro e um pensador, na hora da visão consciente da alta missão a cumprir, qual seja a de vislumbrar, apoiado numa robusta compleição poética, a manifestação da Eternidade, e captar esse belo segredo de modo a poder transmiti-lo como herança divina, aos altos destinos de uma Pátria.
Esta sugestão que se desprende do trabalho de António Soares, não é absolutamente incompatível com a sua fama de pintor mundano?
Parece que sim. No entanto António Soares, quando lhe coloco esta questão, responde deste modo:
– Na aparência, há um conflito de atitudes, mas em boa verdade, a variedade de aspectos é uma das mais belas manifestações da vida. O mundo frívolo, o mundo das aparências, quando bem visto, não é menos valioso do que as verdades superiores que incitam à austeridade. Além de tudo o mais é bom não esquecer que a frivolidade também tem os seus dramas…
– Uma arte que foge da reunião mundana?
– Exactamente…
«Eu sempre fui assim, como sou agora. Sempre tive as preocupações, que são agora mais evidentes na minha obra. Simplesmente o que houve, foi talvez o propósito de não revelar esse aspecto do meu querer e do meu sentir, por o não julgar com a suficiente energia de reflexão e de realização capaz de os exprimir. Esse trabalho, que está vendo, essa interpretação de Camões, trabalha-me na imaginação e tem ocupado as minhas horas mais intensas de estudo, há talvez 20 anos! Só agora pude levar a efeito, esse desejo. Tudo tem a sua hora…
– Chegou a hora da conversão?...
– A pergunta é bastante violenta. A uma questão indiscreta, responde-se com uma “blague”. A uma oportunidade iniludível de definir uma linha de conduta, só se pode retorquir, estremando campos. Foi a minha intenção arriscada.
«Quando principiou em mim, aquele conjunto de manifestações da sensibilidade, que nos conduzem à consciência do nosso temperamento artístico, encontrei resistências, bem entendido, resistência de ideias, não de pessoas. Naturalmente a minha reacção, tinha de se dar. No meu caso estavam também outros artistas. Não concordávamos com a orientação artística estabelecida e até posso avançar mais… Compreendi que os grandes mestres do Passado, não eram justamente compreendidos nas suas virtudes. Verifiquei que se tinha formado um conceito, chamado Escola, que não aceitava a espontânea florescência do espírito artístico, e o apertava em fórmulas, deformando-o como um pé, em bota apertada.
– Teoria da bota de elástico…
António Soares, inalterável prossegue:
– Eu era novo demais e insignificante, para tentar sozinho e sem exemplo, todo esse trabalho de rebeldia e insurgência.
«Ao mesmo tempo constatava, pelo livro e pelo jornal, que em França, Alemanha e outros países havia quem, agindo pela mesma ânsia, se dava com o maior entusiasmo à tarefa do renovamento.
«Aqui em Portugal, tanto como eu, existiam, e existem artistas, que pelo seu talento e qualidade de espírito, foram os meus caros companheiros de espírito dessas belas horas de luta.
«Claro está, que essas atitudes geram quase sempre um excesso de entusiasmo que muito prejudica a virtude principal dos primeiros impulsos criando a cegueira que acompanha todas as paixões de espírito.
«No caso a que me quero referir, chegaram ao delírio. Nesta manifestação de entusiasmo, eu já não poderia conviver.
«Eu tive sempre o entusiasmo lento no deflagrar, e o cuidado de reflectir.
«Confundiu-se a acção com a retórica. Por exemplo a célebre frase de Marinetti, afirmando a necessidade de queimar os museus foi tomada à letra.
«Não se viu que se tratava de uma exposição panfletária porque seria o próprio Marinetti, o primeiro a acudir ao museu, empregando uma violência de acção, se acaso soubesse que algum exaltado, procurava pôr em prática, tão louco intento.
«Seria muito capaz de deixar a sua conferência em meio.
– E deste modo deixou para trás o modernismo…
Era outra estocada, em busca de afirmações. António Soares, replica:
– Em nada esmoreceu em mim a minha grande simpatia pelos modernistas. O que deixei foi de concordar com toda a gente que se diz modernista.
– Mas abandonou a luta, diz-se.
– Não acha um deplorável absurdo empregar força contra uma coisa que já não oferece resistência?
– Qual é o seu processo predilecto de trabalho?
– Não tenho horário. Quando o impulso de realizar me impele para o cavalete, não tenho horas nem para comer. Todo o trabalho me agrada. Em todas as manifestações da minha arte realizo o meu objectivo: levar a minha arte a todos os aspectos da vida, e dar batalha em todos os campos.
«Fiz e faço “décor” para teatro, porque sendo afinal uma preocupação de grandes mestres da pintura, nunca deixo de aparecer onde quer que se passe uma questão artística.
«No nosso país, creio que a atitude dos pintores, fazendo decor, salva o teatro e o público de grandes monstruosidades. Sob o pretexto de fazer arte ligeira, a decoração teatral, presta-se a elevados objectivos pois habitua-se o público assim a conhecer os nossos costumes e a nossa paisagem, fazendo assim uma educação pictoral.
– Um desabafo:
– Essa tarefa não é fácil. A efectuação destas coisas simples, tem-me custado os maiores sacrifícios da minha vida.
«Talvez assim não acontecesse se tivesse optado pela fantasia aliciante da beleza boulevardeira dos teatros de Paris. Talvez fosse melhor entendido…

Cuidado, vamos saír…
António Soares já não está em pantufas.

Eduardo Frias

in JORNAL PORTUGUÊS
redactor, GASTÃO DE BETTENCOURT

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