19 de agosto de 2014

Éramos assim, há vinte e cinco anos




Sem relacionar antecedentes nascidos da estreita convivência com jornais e jornalistas nem atribuir ao acometimento de algumas prozas e razoável número de bonecos publicados nos jornais, revistas e livros, nem tão pouco ao exercício de redactor artístico, num transitório diário matutino, a tendência e o gosto publicitário, mediado 1921, tudo me atraía no jornalismo e me incitava a formar planos, embora ilusórios, de fundar uma folha. Tinha então, além de vinte e sete anos, por companheiro e confidente de semelhantes manias Afonso de Bragança, fraterno e muito saudoso amigo.
Em pleno Chiado, mal floria nos escaparates a resplandecência das luzes eléctricas, pontuando na ladeira o crepúsculo vespertino, era certo encontrá-lo melancólico algumas vezes, mas sempre disposto a vagabundear comigo até de madrugada. Se também era certo, antes de nos conhecermos certa tarde no Café Martinho, embirrar comigo, depois até à derradeira despedida, indo ele para o Norte, nunca mais demos por tal. No tropel dos nossos agitados sonhos e tantas discussões escasseava o tempo na cogitação e na escolha das formas de acção mais verosímil e adequada aos projectos de uma reforma estética e de costumes, que então decidíramos empreender dispondo apenas da cumplicidade passiva do papel. E, claro está, dentre as inúmeras que meditávamos, sempre um jornal nos parecia a melhor; um jornal de feição mais literária, moderadamente anunciador consoante o equilíbrio de pecunia aconselhasse, adornado de gravuras e menos pançudo no fundo e na informação do que eram os órgãos da manhã, nessa época.
Quantas “maquettes” combinámos e desenhei? Não me recordo. Entre tantas, um dia, trabalhávamos a que viria a ser o “Diário de Lisboa”. O Afonso grita-me no Tavares a espantosa novidade: o Dr. Joaquim Manso, seu tão afectuoso amigo e como nós devaneador de reformas e novos jornais, paralelamente concebera o projecto duma gazeta e acolhera muito satisfatoriamente as linhas gerais da que trabalhávamos, ao que parece, bastante ajustadas às características da que ele próprio ideara.
O formato, principalmente, merecera-lhe inteira aprovação. Mas faltava ainda a peça de efeito, a chamada girandola final, que a seguir estrondeou nos meus ouvidos e quase me aniquilou de pasmo! O nosso ilustre amigo Dr. Joaquim Manso constituíra já a empresa editora, e desejava num próximo encontro aprazado para muitos breves dias apreciar os desenhos originais do cabeçalho, o traçado das páginas, e ainda o modelo de um cartaz destinado a anunciar ao público da capital e do resto do País a próxima aparição do futuro “Diário de Lisboa”, o jornal das cinco horas!
Rodaram no quadrante vinte e cinco dilatados anos. Controvérsias, dissídios, lutas de predomínio, bastante sofrimento e algumas lágrimas. No coroamento uma temerosa guerra como nunca se viu. Ruinas e luto.
Mas através de todas as vicissitudes os artífices do sonho sempre são capazes de empreender novas arquitecturas à simples metáfora, cavalgando geladas realidades. Pura geometria no espaço, ainda com propósitos de aliança entre o céu e a terra. Forjados no segredo das origens, novos “Zés do papel impresso”, se adoptar o diminutivo de um amigo nosso, se subordinarão ao mesmíssimo fatalismo dos prelos. Sem o seu auxílio, daquele meu amigo, visionário lúcido e talentosíssimo, de quem agora na rampa do Chiado não diviso a estirada silhueta, não possuiríamos entretecida com subtil e engenhoso humor, entre sentimental e sarcástico, a formosa esteira de preciosidades desdobradas no “Chá das Cinco”, e as suas rotinas, na maior parte perdidas por sómente as reter na memória.
No número dos raros que acarinharam ainda no berço o “Diário de Lisboa”, pareceu-me apropositado evocar os referidos sucessos. Mas seria injusto esquecer, sem uma única excepção, todos os trabalhadores que com inegável talento, dedicação e saber, promoveram o seu fortalecimento, com tanto êxito, como quando o corporizaram. Amigos todos que muito prezo a cujo sentimento de companheirismo me conservarei sempre grato. Em boa verdade, a minha insignificante interferência reduz-se praticamente a uma simplória cimalha que sem o poderoso concurso do seu esforço e a superior direcção do seu fundador e meu benevolente amigo Dr. Joaquim Manso, a quem presto calorosa homenagem e felicito do coração, teria decerto abatido, e não observaríamos hoje com fundo regozijo a rodagem em movimento do mostrador do tempo, como no das rotativas a contagem dos exemplares, a soma esperada de mais virtuosos aniversários.

Pintor António Soares
in DIÁRIO DE LISBOA, 6 de Abril de 1946

Este artigo, escrito pelo próprio António Soares na comemoração dos 25 anos do diário vespertino lisboeta, relembra a génese do "Diário de Lisboa" , e presta uma sentida homenagem ao seu grande amigo, o jornalista Afonso de Bragança. Entende-se por isso a intransigente defesa que o Dr. Joaquim Manso sempre fez do cabeçalho do "Diario de Lisbôa". Em 1921, a grafia correcta era esta (sem acentuação obrigatória nas palavras exdrúxulas, e com acento circunflexo no "ô" de Lisboa) e ele não admitia que se alterasse um desenho do António Soares, com quem sempre manteve uma profunda amizade...

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