19 de agosto de 2014

António Soares, um pintor excepcional

por Manuela de Azevedo

António Soares mergulhou as raízes da sua arte no mais puro da forma e da criação clássica para aflorar da terra na mais bela, sádia e estonteante expressão da pintura moderna. O artista despiu os ouropéis do academismo decadente e ergueu-se, puríssimo de forma e côr, acima de tudo o que entre nós constitue conceito de arte. Na verdade, que suave, que reconfortante, que extraordinário banho de beleza se toma, visitando a mais notável exposição de pintura a que Lisboa tem assistido nos últimos anos…

Mesmo quando é pagão – é ungido de um misterioso sôpro de sentimento bíblico. Às vezes as suas têmperas são pastorais melodiosas. Outras vezes, porém, lembram bocadinhos de brasa viva, satânica, arrancados a corpos coleantes ou às almas de fogo de vidas transviadas do caminho do amor sagrado…

Quando se entra no primeiro salão da exposição, ali à Rua Ivens, na Casa Jalco, o interiorismo da pintura como se fecha ainda mais. É preciso por os olhos em cada um dos quadros, porque nêles não há as cores gritantes do empastelado dos óleos, mas a suavidade austera – mesmo quando é fresca e primaveril – das têmperas inconfundíveis… de António Soares.

Que coisas maravilhosas é possível criar com um sépia quente, um rosa suave e um verde sêco de combinações secretas!...

António Soares é hoje o nosso primeiro artista de têmpera: pela segurança do desenho, pela voluptuosidade quási inconsciente das formas e o bom gosto das combinações de cores. E, não só por isso – e nem só na têmpera – António Soares se pode comparar a si próprio: é simplesmente pela frescura e expontaneidade dos seus têmas. Há dias, visitando as Belas Artes, dissemos uma heresia de que queremos penitenciar-nos: a arte de pintar não está em crise. Os artistas é que o estão – diremos agora, ao deixar saudosamente desprenderem-se os olhos do último quadro de António Soares. Os têmas não estão batidos nem banalizados – há muito de extraordinário a colher da natureza como sugestão artística. António Soares assim o prova na escolha dos assuntos em que nem uma só vez se repete, banaliza ou amesquinha. A têmpera, como o fresco, é a arte dos mestres por excelência, aquela que não consente a hesitação nem o engano. E António Soares dando-nos os seus quadros, é muitas vezes mestre.

Que admirar mais na pureza desta obra, feita por um homem excepcional do nosso século – e desde já queremos dizer que Êste artista é “aquilo” que procurávamos em pintura – com seu respeito pela forma, dentro de um processo absolutamente moderno, quer pela técnica, quer pela interpretação da vida e dos homens?

Das suas paisagens ressuma um “sombre” aveludado, de tufos voluptuosos, como das velhas e magníficas tapeçarias da (ilegível); as suas figuras têm coisa de rácico sem etnografia. E mesmo quando são os nossos homens do campo ou lavadeiras – dir-se-ia que não pertencem ao nosso meio, que são faunos ou ninfas de bosques maravilhosos, tão outros, na sua superioridade, são os olhos do artista que os viram e os transmitiram à tela, em cromáticas criações do seu espírito.

“Composição” dá-nos, efectivamente, êsse vislumbre de paragens edénicas dos quadros da Renascença florentina, e a “Rapariga das Maçãs”, como “Vindimadora” ou o “Corpete Vermelho”, riquíssima policromia feita de pedrarias, servem apenas para ilustrar, como evocação, uma opinião que há-de ser unânime – para prestígio e boa reputação do nome da nossa gente.


Corpete Vermelho - 1944

Entretanto, António Soares não vai só à natureza e às coisas materiais buscar sugestões para os assuntos dos seus quadros. Porque tem sensibilidade, técnica e espírito criador, a música serviu-lhe um grande, um excelente têma: Dukas no “Aprendiz de Feiticeiro”, teve em António Soares um grande intérprete sem instrumentos musicais nem influências de Disney.

Dizem-nos que os quadros deste grande artista – e grande em qualquer parte, como o consideraram em Paris – têm obtido uma alta consideração do público que pode animar as artes. Ainda bem! Ainda bem – não por António Soares, já o dissemos, mas por êle próprio, o público que demonstra assim ser acessível à penetração da arte de António Soares – uma arte que não tem comparação e é só igual ao espírito de quem a cria…


in "Vida Mundial Ilustrada", 1944


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