21 de agosto de 2014

A Exposição António Soares




Se eu quizesse comprometter certos meninos-prodigios que ja tocam o cavaquinho da critica de Arte nas gazetas encyclopedicas da nossa terra, perguntar-lhes-hia, deante da bisbilhoteira familia portuguesa, se elles teem a noção, mesmo superficial, da differença que existe entre fazer pintura e alinhar adjectivos. Só o desconhecimento impávido do padre-nosso da pintura, pode explicar a desfaçatez com que elles se apresentam em publico, com as cuecas da intelligencia desapertadas, a fazer batuque de phrases repenicadas sobre tonalidades que não percebem, sobre processos que não existem e sobre pintores que não comprehendem.
Não leio nunca meia columna de prosa d’esses criticos de talagarça, incansaveis bordadores de adjectivos de missanga, sem me lembrar, com uma certa piedade, dos incansaveis limpa-calhas dos electricos. Com effeito, a vida dos primeiros tem uma caprichosa parecença com a dos segundos. É a mesma monotonia no giro quotidiano, o mesmo cuidado no exame das curvas, o mesmo culto pelas coisas superficiaes, o mesmo desejo de não correr para não ser atropelado pela Civilisação… De maneira que, quando em Portugal um d’esses raros artistas que não jogam o dominó ao fazer pintura expõe os seus trabalhos mais recentes, é um regabofe para os fornecedores de critica de Arte a domicilio.
N’esse dia, o armário dos logares-comuns, lavados e passados a ferro, é remechido de lez-a-lez. Verdadeiros satyros, os taes senhores apropriam-se inclusivamente das peças mais intimas do volabulario do Sr. Julio Dantas. Põem brilhantina nos substantivos, pomada amor nos adjectivos, um pouco de rouge nos adverbios de modo e pasta Couraça nos dentes das reticencias… E depois, muito satisfeitos, deitam tudo em cima de um papel, misturam, confundem, desarranjam e atiram-nos com a sua obra á cara, provocadoramente, orgulhosamente, como se atirassem com pedras preciosas.
A final, tudo aquilo brilha, á força de pomadas, mas toda a gente vê n’um apice, que não passa de pechisbeque e do mais ordinário…
 *  *  *
Vem isto a proposito do sapateado estrambotico que certos bailarinos da critica fizeram em volta da exposição do pintor Sr. Antonio Soares. Affeitos ao Nº.1 (Natureza Morta) e ao Nº.7 (Mulher da fava rica) das exposições do costume; tendo a retina magnetisada pela doçura de pastel de nata que ornamenta a paleta dos pintores officiaes – esses cavalheiros julgam-se obrigados a fingir que advinham, que percebem, que sentem a Arte moderna em todas as suas manifestações multiformes e labyrinticas. E zás! não estão com cerimonias. Enfiam um par de castanholas na caneta e põem as palavras a dansar jotas e sevilhanas a propósito da technica do pintor, da psychologia dos seus modelos, da dimensão dos seus quadros e até das meias tintas que elle usa…
Emquanto em Portugal não estiver estabelecido por lei que não basta possuir um bilhete de livre transito da policia para se ter o direito de fazer critica d’arte, o publico não saberá quais são, entre nós, os artistas verdadeiramente dotados. Ninguém lh’o diz nas gazetas – com sinceridade e com convicção. Pois será, por acaso, elucidar o publico chamar a um pintor que não sahiu de Rilhafoles, que não é estrábico, que não toma cocaína, que aborrece o absinto, esta coisa tremenda – sensibilidade mórbida? Pois não será uma palhaçada, d’essas que fazem rir pacóvios, chamar ao lápis preto, vulgar, Faber nº.2, de um desenhista – lápis côr de rosa? Pois será, por ventura, fazer critica encher uma columna de jornal com pontos, virgulas, pontos e virgulas e palavrinhas como estas – pinceladas multicores, manchas admiráveis de intenção, assombrosa correcção de traço?
O Sr. Antonio Soares é a victima mais recente das pachouchadas da critica. Treinado no desenho desenha. Pintor por temperamento pinta. A razão fundamental da sua arte é isto e não tem nada de mysterioso. Porque lhe attribuem os críticos ademanes de fakir? Porque deslustram a sua arte tão limpida, considerando litteraria a sua pintura? Porque veem intenções perversas, nervos excitados, caprichos de visão, détraquement, onde existe simplesmente raciocinio, observação, alma, intelligencia e métier? Porque se perturbam com as côres esbatidas nos quadros, se ellas nem são estranhas nem abomináveis se são, de facto, as côres exigidas pelo décor imaginado e vivido pelo artista? Porque veem complexidade e malabarismo onde ha unicamente verdade e belleza?
Como o impudor vai corrompendo todas as camadas da sociedade portugueza! Como ha de ser difícil rehabilitar uma nacionalidade atropelada, dia a dia, na sua vida intellectiva e moral, por essas manadas de bucephalos traiçoeiros que p’ra’hi estadeiam a sua influencia! Elles intromettem-se na politica, elles dominam na litteratura, elles pontificam na critica de arte, sobranceiros, petulantes, apparatosos e… tremendamente inconscientes. Tremendamente inconscientes, repito. Porque, se o não fossem, restringiriam a sua acção, saberiam disfarçar a sua ignorancia, tentariam tornar menos offensivo do senso-commum o seu culto ruidoso da banalidade. Mas ninguém tem já força para os suster na sua marcha desenfreada. E elles seguem, seguem por’hi fóra, espezinhando concepções d’arte, amachucando ideias de belleza, cortando cerce as expansões mais rutilas da vida moderna – verdadeiros barbaros na exhibição do seu encyclopedismo asnatico que só um paiz lymphatico como o nosso pode auctorisar e fortalecer…
*  *  *
A exposição de pintura de Antonio Soares, compunha-se d’um certo numero de quadros, que não contei. Os jornaes foram, porém, d’uma unanimidade generosa na fixação do numero – 30. Nem 29, nem 31. Trinta. Quando entrei na sala da Exposição olhei os quadros em conjuncto. Fiquei encantado, humanamente encantado, sem que a minha sensibilidade, apesar de bastante flexível, soffresse nenhum arrepio. Décor luminoso, levemente garrido, originando uma atmosphera translucida e suave que me deixou o espirito n’um á vontade pouco frequente. Silhuetas desencontradas, d’um colorido hipnotico, attrahentes, com movimento, desafiando altivamente a luz. Linhas ondulantes, sensuaes, femininas, aqui, acolá, mais além, multiplices, desembaraçadas e definitivas. Vida. Vibração. Claridade. Nada de mysterioso nem de satanico…
Foi isto que vi n’um relance, a distancia.
Ao abeirar-me dos quadros, a minha primeira impressão não soffreu quebranto. Desconheço o ritual da louvaminha. Tenho, portanto, o direito de escrever que não vi nada de grandioso nem de immortal. O sr. Antonio Soares não possue, felizmente, a mania das grandezas. E também não tem a velleidade de suppôr que a sua obra actual é definitiva e intangível. O traço mais nítido da sua personalidade de artista é o seu desejo de ineditismo. A sua pintura não crystallisou. A procura de tonalidades lucidas e vibrantes é continua. Inferioridade? Bizarrismo? Inexperiência? O contrario d’isto tudo. Pintar é dynamisar. Tudo tem expressão. Tudo tem, por conseguinte, movimento, mesmo o que parece incorpóreo. O verdadeiro artista vive para a recherche d’esse movimento, tem a ambição de surpreender o imponderavel.
Os críticos ignaros não perceberam esta ambição em nenhum dos trabalhos do sr. Antonio Soares. Pois ella é bem transparente! E também não presentiram que estavam em presença de um artista invulgarmente intelligente e dotado de um excepcional temperamento de pintor. Basta vêr o equilibrio perfeito das suas composições para se comprehender que o artista não as improvisou, como um tocador de fado. Ha alli consciência, intenção e recursos technicos. Ha principalmente intenção. E isto, para mim, é fundamental. Um artista que sabe o que quer, embora o não realise completamente, é sempre um valor positivo. Mais cedo ou mais tarde – na hora propria  o seu triumpho é certo e só poderá surprehender os que julgam que a pintura, mesmo a de coisas fúteis, é uma futilidade.
*  *  *
Uma das coisas mais irritantes para os críticos foi o sr. Antonio Soares ter exposto unicamente cabeças de mulheres. D’esse facto naturalíssimo, inferiram esses senhores que o sr. Antonio Soares preferira o mais fácil, quando a verdade é que elle escolheu o mais dificil. Dar expressão a uma physionomia, vibratilisar uma figura, vivificar um modelo até o ponto de o vermos em relevo dentro do encadrement, não é trabalho que permitta sortes de prestidigitação na technica. Depois, existe ainda esta difficuldade tremenda: fixar, sem exaggero de detalhes, o intimo, a psycologia, a sombra moral e pathologica do personagem e de forma que o seu exame permitta inclusivamente, mais tarde, entrever as características da sua epocha.
Quando um artista consciente se abalança a trabalhos d’estas exigencias, em vez de realisar o mais fácil (que é sempre o mais vistoso e o mais artificial) merece encómios e não diatribes. O Sr. Antonio Soares obteve o que não merecia. Até lhe chamaram com proposito deprimente – pintor de mundanidades. E acrescentaram solemnemente que ele possue uma sensibilidade morbida e que a sua pintura é sensual e perversa. Onde? Como? Porquê? Não é a pintura que é sensual e perversa é a mulher, as mulheres que serviram de modelo ao Sr. Antonio Soares. Mas de quem é a culpa? As mulheres que elle pintou são assim, aparte a estylisação que acompanha, inevitavelmente, a imaginação do artista criador de ambientes picturaes. E essa estylisação, que não implica com a verdade, junta com a intenção decorativa, constitue uma das notas mais originaes da pintura do Sr. Antonio Soares.
VICTOR FALCÃO

in Contemporanea nº.7 1923 


NOTA: o texto deste artigo está grafado tal qual aparece no texto original, de 1923; a exposição referenciada é a 3ª. Exposição Individual, que teve lugar na Casa Araújo & Bastos, inaugurada na última semana de Dezembro de 1922, que esteve patente até aos primeiros dias de Janeiro de 1923




Sem comentários: