Rio de Janeiro, 30 de Maio de
1931
Ora aqui tem, a minha amável
leitora e o hirsuto crítico de café, o pintor António Soares em pantufas.
Entremos devagarinho, porque o artista trabalha.
Não façamos bulha. Quanto aos
paradoxos, às falsas ideias de requinte e à incoerência do que é costume chamar
modernismo, é bom deixar tudo isso à porta, ao tocarmos a aldabra deste 4º
andar da Rua do Salitre, onde António Soares pinta e medita.
É necessário fazer esta
prevenção, porque o artista, em sua casa, é completamente diferente desse
estridente figurino de ilustrador da moda, e pintor bizarro da frivolidade
mundana.
António Soares na intimidade do
seu “atelier” dá-nos a impressão de um anacoreta de côr. O seu “robe”, parece
um hábito, e os pincéis, a paleta, e alguns volumes, sobre a antiguidade
clássica, de mistura com os mais ousados ploblemas da investigação
contemporânea, lembram-nos as peças necessárias ao ritual de um culto celebrado
com a mais escrupulosa severidade.
Vive-se aqui, uma atmosfera de
intensa cultura e recolhimento.
António Soares, fino observador
de expressões, procura destruir esta impressão de austeridade e graciosamente,
conta:
– Como está vendo, não estou
num “atelier”. Aproveitei é certo, a luz desta sala, mas não foi a luz que me
obrigou a trazer para aqui o cavalete.
–
Então?
– Foi um aguaceiro. Chovia em
casa como na rua. Esta sala foi vítima de uma inundação. Para salvar os móveis,
mudei-os. A sala ficou deserta, e aqui tem a história da improvisação deste…
“atelier”.
Rimos. Olho o quadro em que o
artista está trabalhando e deixo escapar esta interrogação:
–
Quem é esse doutor da Igreja, que você (está) tratando com tão justa elevação?
António Soares, sorri. Eu
encaro mais o rosto da figura e reconheço, nela, num solene perfil, uma
magnífica expressão de Camões. O cantor da Raça, está ali, fixado num esplendor
de iluminação profética. Não é um poeta nem um soldado. É um guerreiro e um
pensador, na hora da visão consciente da alta missão a cumprir, qual seja a de
vislumbrar, apoiado numa robusta compleição poética, a manifestação da
Eternidade, e captar esse belo segredo de modo a poder transmiti-lo como
herança divina, aos altos destinos de uma Pátria.
Esta sugestão que se desprende
do trabalho de António Soares, não é absolutamente incompatível com a sua fama
de pintor mundano?
Parece que sim. No entanto
António Soares, quando lhe coloco esta questão, responde deste modo:
– Na aparência, há um conflito
de atitudes, mas em boa verdade, a variedade de aspectos é uma das mais belas
manifestações da vida. O mundo frívolo, o mundo das aparências, quando bem
visto, não é menos valioso do que as verdades superiores que incitam à
austeridade. Além de tudo o mais é bom não esquecer que a frivolidade também
tem os seus dramas…
–
Uma arte que foge da reunião mundana?
– Exactamente…
«Eu sempre fui assim, como sou
agora. Sempre tive as preocupações, que são agora mais evidentes na minha obra.
Simplesmente o que houve, foi talvez o propósito de não revelar esse aspecto do
meu querer e do meu sentir, por o não julgar com a suficiente energia de
reflexão e de realização capaz de os exprimir. Esse trabalho, que está vendo,
essa interpretação de Camões, trabalha-me na imaginação e tem ocupado as minhas
horas mais intensas de estudo, há talvez 20 anos! Só agora pude levar a efeito,
esse desejo. Tudo tem a sua hora…
–
Chegou a hora da conversão?...
– A pergunta é bastante
violenta. A uma questão indiscreta, responde-se com uma “blague”. A uma
oportunidade iniludível de definir uma linha de conduta, só se pode retorquir,
estremando campos. Foi a minha intenção arriscada.
«Quando principiou em mim,
aquele conjunto de manifestações da sensibilidade, que nos conduzem à consciência
do nosso temperamento artístico, encontrei resistências, bem entendido,
resistência de ideias, não de pessoas. Naturalmente a minha reacção, tinha de
se dar. No meu caso estavam também outros artistas. Não concordávamos com a
orientação artística estabelecida e até posso avançar mais… Compreendi que os
grandes mestres do Passado, não eram justamente compreendidos nas suas
virtudes. Verifiquei que se tinha formado um conceito, chamado Escola, que não
aceitava a espontânea florescência do espírito artístico, e o apertava em
fórmulas, deformando-o como um pé, em bota apertada.
–
Teoria da bota de elástico…
António Soares, inalterável
prossegue:
– Eu era novo demais e
insignificante, para tentar sozinho e sem exemplo, todo esse trabalho de
rebeldia e insurgência.
«Ao mesmo tempo constatava,
pelo livro e pelo jornal, que em França, Alemanha e outros países havia quem,
agindo pela mesma ânsia, se dava com o maior entusiasmo à tarefa do
renovamento.
«Aqui em Portugal, tanto como
eu, existiam, e existem artistas, que pelo seu talento e qualidade de espírito,
foram os meus caros companheiros de espírito dessas belas horas de luta.
«Claro está, que essas atitudes
geram quase sempre um excesso de entusiasmo que muito prejudica a virtude
principal dos primeiros impulsos criando a cegueira que acompanha todas as
paixões de espírito.
«No caso a que me quero
referir, chegaram ao delírio. Nesta manifestação de entusiasmo, eu já não
poderia conviver.
«Eu tive sempre o entusiasmo
lento no deflagrar, e o cuidado de reflectir.
«Confundiu-se a acção com a
retórica. Por exemplo a célebre frase de Marinetti, afirmando a necessidade de
queimar os museus foi tomada à letra.
«Não se viu que se tratava de
uma exposição panfletária porque seria o próprio Marinetti, o primeiro a acudir
ao museu, empregando uma violência de acção, se acaso soubesse que algum
exaltado, procurava pôr em prática, tão louco intento.
«Seria muito capaz de deixar a
sua conferência em meio.
–
E deste modo deixou para trás o modernismo…
Era outra estocada, em busca de
afirmações. António Soares, replica:
– Em nada esmoreceu em mim a
minha grande simpatia pelos modernistas. O que deixei foi de concordar com toda
a gente que se diz modernista.
–
Mas abandonou a luta, diz-se.
– Não acha um deplorável
absurdo empregar força contra uma coisa que já não oferece resistência?
–
Qual é o seu processo predilecto de trabalho?
– Não tenho horário. Quando o
impulso de realizar me impele para o cavalete, não tenho horas nem para comer.
Todo o trabalho me agrada. Em todas as manifestações da minha arte realizo o
meu objectivo: levar a minha arte a todos os aspectos da vida, e dar batalha em
todos os campos.
«Fiz e faço “décor” para
teatro, porque sendo afinal uma preocupação de grandes mestres da pintura,
nunca deixo de aparecer onde quer que se passe uma questão artística.
«No nosso país, creio que a
atitude dos pintores, fazendo decor, salva o teatro e o público de grandes
monstruosidades. Sob o pretexto de fazer arte ligeira, a decoração teatral,
presta-se a elevados objectivos pois habitua-se o público assim a conhecer os
nossos costumes e a nossa paisagem, fazendo assim uma educação pictoral.
–
Um desabafo:
– Essa tarefa não é fácil. A
efectuação destas coisas simples, tem-me custado os maiores sacrifícios da
minha vida.
«Talvez assim não acontecesse
se tivesse optado pela fantasia aliciante da beleza boulevardeira dos teatros
de Paris. Talvez fosse melhor entendido…
Cuidado, vamos saír…
António Soares já não está em
pantufas.
Eduardo
Frias
in JORNAL PORTUGUÊS
redactor, GASTÃO DE BETTENCOURT
Sem comentários:
Enviar um comentário