21 de outubro de 2014

Filme da Exposição "OLHARES - Os Estudos e os Desenhos de ANTÓNIO SOARES"

Este blog está a ficar um pouco mais "interactivo", com a inclusão de filmes:



Este pequeno filme foi realizado pela artista plástica Graça Martins, que graciosamente e com muita amizade resolveu colmatar uma falta que já se fazia sentir, nesta exposição. 
Com efeito, hoje em dia o filme é um instrumento essencial da comunicação, quanto mais não seja pela facilidade com que qualquer pessoa o pode fazer. Por isso, e na falta ou atraso na elaboração dos filmes mais institucionais previamente pensados, aqui vai uma imagem mais "objectiva"... Bem haja, Graça!

NOTA - A partir de agora, vamos começar a publicar, regularmente, imagens das obras que se encontram expostas, bem como imagens de outras obras "com história"...

2 de setembro de 2014

"OLHARES - Os Estudos e os Desenhos de ANTÓNIO SOARES" Exposição comemorativa do 120º Aniversário de Nascimento do Mestre António Soares




Eis aqui o "Convite Digital" da Exposição

Olhares: os Estudos e os Desenhos de António Soares

Fica já a data, o local e a hora:

* no próximo dia 20 de Setembro de 2014, sábado, no Porto
* na Fundação Escultor José Rodrigues, na Rua da Fábrica Social
* pelas 16h00 - 4h da tarde

O Pintor António Soares nasceu a 18 de Setembro de 1894. 
A 18 de Setembro de 2014 (quinta-feira) haverá uma Romagem de Saudade ao túmulo, localizado no Cemitério do Calendário, em Vila Nova de Famalicão, pelas 17h00. Serão colocadas flores no túmulo*, onde também se encontra a sua mulher Maria Germana, e será realizada uma Missa de sufrágio na Igreja da Freguesia do Calendário. 

Esta exposição, nas galerias da Fundação Escultor José Rodrigues, estará aberta de segunda a sábado, com entrada livre, e estará durante seis meses à espera da sua visita...

Ao longo desse tempo, para além das visitas das Escolas, dado que a Fundação tem um Serviço Educativo que vai ser adaptado à exposição que está a decorrer, haverá palestras, exibição de filmes, visitas guiadas realizadas por diversos especialistas, Conservadores, Directores de Museus, Investigadores Universitários, estudiosos...

Também aqui, publicaremos os pequenos ou grandes acontecimentos que irão tendo lugar, e de todos eles se farão notícias, que engrossarão o Catálogo, que só ficará completo no dia do encerramento da Exposição, a 21 de Março de 2015!

Não deixem de nos visitar!

* da Família de José Alívio Madureira, avô da cunhada, Maria de Fátima

24 de agosto de 2014

Valores da Pintura Portuguesa - ANTÓNIO SOARES



     Dentre os novos que travaram a cruel batalha da arte, em Portugal, António Soares pode ser considerado um vencedor.
     E nada mais difícil do que vencer pela arte, entre nós.
     Falamos em batalha e o termo não é exagerado: batalha inglória, surda, em que se luta contra um inimigo covarde, que se esconde, que se esfuma na apatia do meio.
     Fazer arte num país onde os artistas são apenas tolerados, onde as exposições não conseguem sacudir a sonolência do público, indiferente, quase hostil, de um público que vive ainda a idade da oleografia barata, é travar uma batalha heróica em que só se mantêm aqueles para quem a arte é uma segunda essência da sua personalidade.
     Sendo um novo, quer pela sua mocidade quer pela sua técnica, António Soares tem já um passado brilhante a atestar o seu labor.
     A pintura de Soares, ultimamente galardoada com a Medalha de Oiro(a) do Salão da Primavera, oferece uma personalidade indiscutível.
     As telas de Soares são unidades sólidas, são valores independentes da escala que o artista traçou, numa visão firme da sua tarefa.
     À pintura de António Soares cabe uma missão, a de demonstrar com veemência, a personalidade, o querer do seu autor. É que Soares é um dos raros pintores, que não titubeiam, que sabem o que querem e ao que vêem.
     Pelo seu processo, pela sua "maneira", Soares sublinha curiosamente a intenção das suas telas, flagrantes, incisivas, modelares.
     A côr não é, para António Soares, a finalidade exibicionista dos que disfarçam a impotência criadora sob a abundância cromática, a côr é para António Soares, unicamente, a veste garbosa de uma intenção espiritual.
     As suas telas representam sempre audaciosas revelações anímicas, análises profundas da verdade que se esconde sob a forma; Soares é um dos raros artistas que compreendem os seus modelos, que travam com êles o diálogo curioso e apaixonado que se traduz na estilisação dum carácter ou duma personalidade.
     Os seus retratos, vivos, intencionais, cheios de observação psicológica, são já uma gloriosa galeria que por si só basta para firmar um nome de artista.
     Os retratados de António Soares vivem na tela a vida espiritual que ocultam, na vida real, sob a máscara apagada do hábito.
     Nas colunas do «A B C» encontrará sempre António Soares o apoio fiel dos seus camaradas de luta, que no terreno ingrato do papel impresso trabalham para o mesmo fim, e que acompanham carinhosamente a sua tarefa brilhante.
     A. C.
in «A B C», Maio de 1929

(a) Salão da Primavera da Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA), de 1929, onde António Soares havia ganho a Medalha de Oiro pelo seu "Retrato de uma bailarina - Natacha"

"MODERNOS ARTISTAS PORTUGUESES"


in REPÚBLICA, 17 de Maio de 1937

               Sob a direcção do crítico e poeta da moderna geração Artur Augusto começou a publicar-se uma obra, cuja falta muito se fazia sentir. Intitula-se "MODERNOS ARTISTAS PORTUGUESES" e é editada pelas Edições Momento, o que por si só é garantia de que se trata de uma obra graficamente digna do seu objectivo.

               O primeiro fascículo, da autoria de Artur Augusto, ocupa-se da personalidade artística do pintor António Soares, sem dúvida um dos mais dotados e de mais acentuada individualidade dos modernos plasticistas.

               Nesse ensaio, o crítico analisa as características da arte de António Soares, anota a sua evolução e a influência dos seus trabalhos noutros artistas mais novos. Completa o ensaio uma nota dos principais trabalhos decorativos daquele pintor e uma colecção de reproduções de alguns dos seus quadros, especialmente retratos.




O "Prémio Diário de Notícias" foi atribuído, este ano, ao Pintor António Soares



          O júri encarregado de atribuir o "Prémio Diário de Notícias", na importância de 30.000$00 resolveu, este ano, consagrar uma obra nacional de arte plástica referente aos dois últimos anos. O nome do escolhido, o grande pintor António Soares, foi ontem proclamado no decurso de um almoço realizado nesta Redacção.
          
          O prémio que tem sido concedido a escritores como Fidelino de Figueiredo, Mário Beirão e José Régio, já distinguiu também alguns valores actuais das artes plásticas, como o escultor Martins Correia, e o arquitecto Keil do Amaral. Este ano foi decidido galardoar um pintor. O nome de António Soares foi, em várias sessões do júri, o indicado, como já dissemos, para receber o prémio. 

          A obra e a figura de António Soares ocupam, com efeito, no panorama da vida cultural e social portuguesa do nosso século, um lugar de assinalado relevo. Personalidade inconfundível, alheia aos apelos e motivações das várias e efémeras correntes estéticas que se têm processado após o impressionismo, apenas com a consciência plena dos caminhos e perspectivas que se enquadram na morfologia do nosso tempo, logo ao despontar para o mundo das artes no ano quase longínquo de 1913, António Soares, ao lado de Almada Negreiros, Jorge Barradas, Stuart de Carvalhais, Canto da Maia, Cristiano Cruz e outros mais, conquistou tal posição que, dentro em breve, passou a ser considerado, tanto pela crítica como pela opinião pública, como uma das colunas mestras da pintura portuguesa contemporânea.

          Através de alguns milhares de trabalhos em pintura a óleo, desenho à pena, a lápis e a carvão guacho, com a discreta e emotiva elegância e originalidade que lhe foram sempre peculiares, interpretou, nos seus aspectos mais vivos e flagrantes, uma notabilíssima série de imagens, costumes e tradições e vivências que é muito difícil encontrar paralelo. Lisboa e Paris, principalmente ao serem evocados pelo seu traço vigoroso e livre, prodigioso de conjugações cromáticas, ressurgem, esplenderosamente, em suas requintadas intimidades e na plena pujança das suas fisionomias cheias de encanto e de surpresa. A graça, o enlevo, a sentimentalidade apurada e sóbria, constituem o seu permanente objectivo e diálogo. Como cenarista, arquitecto decorador de filmes e ilustrador de muitas dezenas de livros, evidenciou também os seus altos méritos. Em todas estas modalidades a sua aristocrática sensabilidade procurou sempre criar diferentes processos de realização formal e conceptual, circunscritos a um âmbito de civilização e bom gosto, à altura dos grandes padrões europeus.

          Independentemente da sua participação em numerosas exposições colectivas, já apresentou desde 1913, em Lisboa e no Porto, dezassete exposições individuais. A última efectuada em Dezembro do ano findo na capital do Norte, abrangeu um conjunto de trabalhos, pertencentes ao período da sua juventude, o qual veio realçar, além de outros predicados, a qualidade de extraordinária antecipação da maior parte dos rumos e tendências presentemente adoptadas.

          António Soares que está representado em Portugal nos Museus Nacional de Arte Contemporânea, Soares dos Reis, do Caramulo e José Malhoa, nos palácios Nacional de Queluz e da Assembleia Nacional, gabinetes dos presidentes do Conselho e da Câmara Corporativa e nos Paços Patriarcal de Lisboa e Ducal de Vila Viçosa, possui, também, inúmeras obras nas grandes colecções particulares do nosso país e do estrangeiro. Em 1937, juntamente com Picasso, Vlamick, Dufly, Van Dongen, Maurice Denis, E. Vuillard e Dunoyer de Segonzac, foi contemplado na Exposição Internacional de Paris com o "Grand Prix" de Pintura. Tomou também parte noutros importantes certames, nomeadamente, nas exposições internacionais de Vincennes e Artes e Técnicas de Paris, em 1929 e 1937 respectivamente; Feira Mundial de Nova York em 1939; no pavilhão de Portugal, com a pintura mural "Os Mareantes"e, convidado por Mr. Thomas Watson expôs o quadro intitulado "Portugal my Country", no Pavilhão das Ciências e das Artes; na primeira Bienal de S. Paulo e, em 1952, no Ateneu de Sevilha.

          A sua actividade plástica que já havia merecido artigos e ensaios da autoria de Júlio Dantas, Adriano de Gusmão, Alfredo Pimenta, Correia da Costa e Sousa Pinto, sempre que surgiu em terra estrangeira foi também longamente apreciada e nos termos mais honrosos, tanto para o artista, como também para Portugal.

          Desde longa data António Soares que ascendeu por seus amplos e afirmativos recursos à categoria de Mestre insígne da pintura do mundo do nosso tempo, tem sido distinguido por galardões da maior projecção e significado como: prémios Columbano em 1935 e 1948; várias Medalhas de Ouro em Desenho e Pintura nas expposições da Sociedade Nacional de Belas Artes, e Medalha de Honra da Grande Exposição Internacional de Nova York, em 1939. Foi condecorado pelo Governo Português com o oficialato de Santiago de Espada em 1958 e eleito, por unanimidade, em 1961, vogal da Academia Nacional de Belas Artes.

in DIÁRIO DE NOTÍCIAS, a 3 de Março de 1962

21 de agosto de 2014

Uma hora no Atelier de António Soares

Rio de Janeiro, 30 de Maio de 1931




Ora aqui tem, a minha amável leitora e o hirsuto crítico de café, o pintor António Soares em pantufas. Entremos devagarinho, porque o artista trabalha.
Não façamos bulha. Quanto aos paradoxos, às falsas ideias de requinte e à incoerência do que é costume chamar modernismo, é bom deixar tudo isso à porta, ao tocarmos a aldabra deste 4º andar da Rua do Salitre, onde António Soares pinta e medita.
É necessário fazer esta prevenção, porque o artista, em sua casa, é completamente diferente desse estridente figurino de ilustrador da moda, e pintor bizarro da frivolidade mundana.
António Soares na intimidade do seu “atelier” dá-nos a impressão de um anacoreta de côr. O seu “robe”, parece um hábito, e os pincéis, a paleta, e alguns volumes, sobre a antiguidade clássica, de mistura com os mais ousados ploblemas da investigação contemporânea, lembram-nos as peças necessárias ao ritual de um culto celebrado com a mais escrupulosa severidade.
Vive-se aqui, uma atmosfera de intensa cultura e recolhimento.
António Soares, fino observador de expressões, procura destruir esta impressão de austeridade e graciosamente, conta:
– Como está vendo, não estou num “atelier”. Aproveitei é certo, a luz desta sala, mas não foi a luz que me obrigou a trazer para aqui o cavalete.
– Então?
– Foi um aguaceiro. Chovia em casa como na rua. Esta sala foi vítima de uma inundação. Para salvar os móveis, mudei-os. A sala ficou deserta, e aqui tem a história da improvisação deste… “atelier”.
Rimos. Olho o quadro em que o artista está trabalhando e deixo escapar esta interrogação:
– Quem é esse doutor da Igreja, que você (está) tratando com tão justa elevação?
António Soares, sorri. Eu encaro mais o rosto da figura e reconheço, nela, num solene perfil, uma magnífica expressão de Camões. O cantor da Raça, está ali, fixado num esplendor de iluminação profética. Não é um poeta nem um soldado. É um guerreiro e um pensador, na hora da visão consciente da alta missão a cumprir, qual seja a de vislumbrar, apoiado numa robusta compleição poética, a manifestação da Eternidade, e captar esse belo segredo de modo a poder transmiti-lo como herança divina, aos altos destinos de uma Pátria.
Esta sugestão que se desprende do trabalho de António Soares, não é absolutamente incompatível com a sua fama de pintor mundano?
Parece que sim. No entanto António Soares, quando lhe coloco esta questão, responde deste modo:
– Na aparência, há um conflito de atitudes, mas em boa verdade, a variedade de aspectos é uma das mais belas manifestações da vida. O mundo frívolo, o mundo das aparências, quando bem visto, não é menos valioso do que as verdades superiores que incitam à austeridade. Além de tudo o mais é bom não esquecer que a frivolidade também tem os seus dramas…
– Uma arte que foge da reunião mundana?
– Exactamente…
«Eu sempre fui assim, como sou agora. Sempre tive as preocupações, que são agora mais evidentes na minha obra. Simplesmente o que houve, foi talvez o propósito de não revelar esse aspecto do meu querer e do meu sentir, por o não julgar com a suficiente energia de reflexão e de realização capaz de os exprimir. Esse trabalho, que está vendo, essa interpretação de Camões, trabalha-me na imaginação e tem ocupado as minhas horas mais intensas de estudo, há talvez 20 anos! Só agora pude levar a efeito, esse desejo. Tudo tem a sua hora…
– Chegou a hora da conversão?...
– A pergunta é bastante violenta. A uma questão indiscreta, responde-se com uma “blague”. A uma oportunidade iniludível de definir uma linha de conduta, só se pode retorquir, estremando campos. Foi a minha intenção arriscada.
«Quando principiou em mim, aquele conjunto de manifestações da sensibilidade, que nos conduzem à consciência do nosso temperamento artístico, encontrei resistências, bem entendido, resistência de ideias, não de pessoas. Naturalmente a minha reacção, tinha de se dar. No meu caso estavam também outros artistas. Não concordávamos com a orientação artística estabelecida e até posso avançar mais… Compreendi que os grandes mestres do Passado, não eram justamente compreendidos nas suas virtudes. Verifiquei que se tinha formado um conceito, chamado Escola, que não aceitava a espontânea florescência do espírito artístico, e o apertava em fórmulas, deformando-o como um pé, em bota apertada.
– Teoria da bota de elástico…
António Soares, inalterável prossegue:
– Eu era novo demais e insignificante, para tentar sozinho e sem exemplo, todo esse trabalho de rebeldia e insurgência.
«Ao mesmo tempo constatava, pelo livro e pelo jornal, que em França, Alemanha e outros países havia quem, agindo pela mesma ânsia, se dava com o maior entusiasmo à tarefa do renovamento.
«Aqui em Portugal, tanto como eu, existiam, e existem artistas, que pelo seu talento e qualidade de espírito, foram os meus caros companheiros de espírito dessas belas horas de luta.
«Claro está, que essas atitudes geram quase sempre um excesso de entusiasmo que muito prejudica a virtude principal dos primeiros impulsos criando a cegueira que acompanha todas as paixões de espírito.
«No caso a que me quero referir, chegaram ao delírio. Nesta manifestação de entusiasmo, eu já não poderia conviver.
«Eu tive sempre o entusiasmo lento no deflagrar, e o cuidado de reflectir.
«Confundiu-se a acção com a retórica. Por exemplo a célebre frase de Marinetti, afirmando a necessidade de queimar os museus foi tomada à letra.
«Não se viu que se tratava de uma exposição panfletária porque seria o próprio Marinetti, o primeiro a acudir ao museu, empregando uma violência de acção, se acaso soubesse que algum exaltado, procurava pôr em prática, tão louco intento.
«Seria muito capaz de deixar a sua conferência em meio.
– E deste modo deixou para trás o modernismo…
Era outra estocada, em busca de afirmações. António Soares, replica:
– Em nada esmoreceu em mim a minha grande simpatia pelos modernistas. O que deixei foi de concordar com toda a gente que se diz modernista.
– Mas abandonou a luta, diz-se.
– Não acha um deplorável absurdo empregar força contra uma coisa que já não oferece resistência?
– Qual é o seu processo predilecto de trabalho?
– Não tenho horário. Quando o impulso de realizar me impele para o cavalete, não tenho horas nem para comer. Todo o trabalho me agrada. Em todas as manifestações da minha arte realizo o meu objectivo: levar a minha arte a todos os aspectos da vida, e dar batalha em todos os campos.
«Fiz e faço “décor” para teatro, porque sendo afinal uma preocupação de grandes mestres da pintura, nunca deixo de aparecer onde quer que se passe uma questão artística.
«No nosso país, creio que a atitude dos pintores, fazendo decor, salva o teatro e o público de grandes monstruosidades. Sob o pretexto de fazer arte ligeira, a decoração teatral, presta-se a elevados objectivos pois habitua-se o público assim a conhecer os nossos costumes e a nossa paisagem, fazendo assim uma educação pictoral.
– Um desabafo:
– Essa tarefa não é fácil. A efectuação destas coisas simples, tem-me custado os maiores sacrifícios da minha vida.
«Talvez assim não acontecesse se tivesse optado pela fantasia aliciante da beleza boulevardeira dos teatros de Paris. Talvez fosse melhor entendido…

Cuidado, vamos saír…
António Soares já não está em pantufas.

Eduardo Frias

in JORNAL PORTUGUÊS
redactor, GASTÃO DE BETTENCOURT

A Exposição António Soares




Se eu quizesse comprometter certos meninos-prodigios que ja tocam o cavaquinho da critica de Arte nas gazetas encyclopedicas da nossa terra, perguntar-lhes-hia, deante da bisbilhoteira familia portuguesa, se elles teem a noção, mesmo superficial, da differença que existe entre fazer pintura e alinhar adjectivos. Só o desconhecimento impávido do padre-nosso da pintura, pode explicar a desfaçatez com que elles se apresentam em publico, com as cuecas da intelligencia desapertadas, a fazer batuque de phrases repenicadas sobre tonalidades que não percebem, sobre processos que não existem e sobre pintores que não comprehendem.
Não leio nunca meia columna de prosa d’esses criticos de talagarça, incansaveis bordadores de adjectivos de missanga, sem me lembrar, com uma certa piedade, dos incansaveis limpa-calhas dos electricos. Com effeito, a vida dos primeiros tem uma caprichosa parecença com a dos segundos. É a mesma monotonia no giro quotidiano, o mesmo cuidado no exame das curvas, o mesmo culto pelas coisas superficiaes, o mesmo desejo de não correr para não ser atropelado pela Civilisação… De maneira que, quando em Portugal um d’esses raros artistas que não jogam o dominó ao fazer pintura expõe os seus trabalhos mais recentes, é um regabofe para os fornecedores de critica de Arte a domicilio.
N’esse dia, o armário dos logares-comuns, lavados e passados a ferro, é remechido de lez-a-lez. Verdadeiros satyros, os taes senhores apropriam-se inclusivamente das peças mais intimas do volabulario do Sr. Julio Dantas. Põem brilhantina nos substantivos, pomada amor nos adjectivos, um pouco de rouge nos adverbios de modo e pasta Couraça nos dentes das reticencias… E depois, muito satisfeitos, deitam tudo em cima de um papel, misturam, confundem, desarranjam e atiram-nos com a sua obra á cara, provocadoramente, orgulhosamente, como se atirassem com pedras preciosas.
A final, tudo aquilo brilha, á força de pomadas, mas toda a gente vê n’um apice, que não passa de pechisbeque e do mais ordinário…
 *  *  *
Vem isto a proposito do sapateado estrambotico que certos bailarinos da critica fizeram em volta da exposição do pintor Sr. Antonio Soares. Affeitos ao Nº.1 (Natureza Morta) e ao Nº.7 (Mulher da fava rica) das exposições do costume; tendo a retina magnetisada pela doçura de pastel de nata que ornamenta a paleta dos pintores officiaes – esses cavalheiros julgam-se obrigados a fingir que advinham, que percebem, que sentem a Arte moderna em todas as suas manifestações multiformes e labyrinticas. E zás! não estão com cerimonias. Enfiam um par de castanholas na caneta e põem as palavras a dansar jotas e sevilhanas a propósito da technica do pintor, da psychologia dos seus modelos, da dimensão dos seus quadros e até das meias tintas que elle usa…
Emquanto em Portugal não estiver estabelecido por lei que não basta possuir um bilhete de livre transito da policia para se ter o direito de fazer critica d’arte, o publico não saberá quais são, entre nós, os artistas verdadeiramente dotados. Ninguém lh’o diz nas gazetas – com sinceridade e com convicção. Pois será, por acaso, elucidar o publico chamar a um pintor que não sahiu de Rilhafoles, que não é estrábico, que não toma cocaína, que aborrece o absinto, esta coisa tremenda – sensibilidade mórbida? Pois não será uma palhaçada, d’essas que fazem rir pacóvios, chamar ao lápis preto, vulgar, Faber nº.2, de um desenhista – lápis côr de rosa? Pois será, por ventura, fazer critica encher uma columna de jornal com pontos, virgulas, pontos e virgulas e palavrinhas como estas – pinceladas multicores, manchas admiráveis de intenção, assombrosa correcção de traço?
O Sr. Antonio Soares é a victima mais recente das pachouchadas da critica. Treinado no desenho desenha. Pintor por temperamento pinta. A razão fundamental da sua arte é isto e não tem nada de mysterioso. Porque lhe attribuem os críticos ademanes de fakir? Porque deslustram a sua arte tão limpida, considerando litteraria a sua pintura? Porque veem intenções perversas, nervos excitados, caprichos de visão, détraquement, onde existe simplesmente raciocinio, observação, alma, intelligencia e métier? Porque se perturbam com as côres esbatidas nos quadros, se ellas nem são estranhas nem abomináveis se são, de facto, as côres exigidas pelo décor imaginado e vivido pelo artista? Porque veem complexidade e malabarismo onde ha unicamente verdade e belleza?
Como o impudor vai corrompendo todas as camadas da sociedade portugueza! Como ha de ser difícil rehabilitar uma nacionalidade atropelada, dia a dia, na sua vida intellectiva e moral, por essas manadas de bucephalos traiçoeiros que p’ra’hi estadeiam a sua influencia! Elles intromettem-se na politica, elles dominam na litteratura, elles pontificam na critica de arte, sobranceiros, petulantes, apparatosos e… tremendamente inconscientes. Tremendamente inconscientes, repito. Porque, se o não fossem, restringiriam a sua acção, saberiam disfarçar a sua ignorancia, tentariam tornar menos offensivo do senso-commum o seu culto ruidoso da banalidade. Mas ninguém tem já força para os suster na sua marcha desenfreada. E elles seguem, seguem por’hi fóra, espezinhando concepções d’arte, amachucando ideias de belleza, cortando cerce as expansões mais rutilas da vida moderna – verdadeiros barbaros na exhibição do seu encyclopedismo asnatico que só um paiz lymphatico como o nosso pode auctorisar e fortalecer…
*  *  *
A exposição de pintura de Antonio Soares, compunha-se d’um certo numero de quadros, que não contei. Os jornaes foram, porém, d’uma unanimidade generosa na fixação do numero – 30. Nem 29, nem 31. Trinta. Quando entrei na sala da Exposição olhei os quadros em conjuncto. Fiquei encantado, humanamente encantado, sem que a minha sensibilidade, apesar de bastante flexível, soffresse nenhum arrepio. Décor luminoso, levemente garrido, originando uma atmosphera translucida e suave que me deixou o espirito n’um á vontade pouco frequente. Silhuetas desencontradas, d’um colorido hipnotico, attrahentes, com movimento, desafiando altivamente a luz. Linhas ondulantes, sensuaes, femininas, aqui, acolá, mais além, multiplices, desembaraçadas e definitivas. Vida. Vibração. Claridade. Nada de mysterioso nem de satanico…
Foi isto que vi n’um relance, a distancia.
Ao abeirar-me dos quadros, a minha primeira impressão não soffreu quebranto. Desconheço o ritual da louvaminha. Tenho, portanto, o direito de escrever que não vi nada de grandioso nem de immortal. O sr. Antonio Soares não possue, felizmente, a mania das grandezas. E também não tem a velleidade de suppôr que a sua obra actual é definitiva e intangível. O traço mais nítido da sua personalidade de artista é o seu desejo de ineditismo. A sua pintura não crystallisou. A procura de tonalidades lucidas e vibrantes é continua. Inferioridade? Bizarrismo? Inexperiência? O contrario d’isto tudo. Pintar é dynamisar. Tudo tem expressão. Tudo tem, por conseguinte, movimento, mesmo o que parece incorpóreo. O verdadeiro artista vive para a recherche d’esse movimento, tem a ambição de surpreender o imponderavel.
Os críticos ignaros não perceberam esta ambição em nenhum dos trabalhos do sr. Antonio Soares. Pois ella é bem transparente! E também não presentiram que estavam em presença de um artista invulgarmente intelligente e dotado de um excepcional temperamento de pintor. Basta vêr o equilibrio perfeito das suas composições para se comprehender que o artista não as improvisou, como um tocador de fado. Ha alli consciência, intenção e recursos technicos. Ha principalmente intenção. E isto, para mim, é fundamental. Um artista que sabe o que quer, embora o não realise completamente, é sempre um valor positivo. Mais cedo ou mais tarde – na hora propria  o seu triumpho é certo e só poderá surprehender os que julgam que a pintura, mesmo a de coisas fúteis, é uma futilidade.
*  *  *
Uma das coisas mais irritantes para os críticos foi o sr. Antonio Soares ter exposto unicamente cabeças de mulheres. D’esse facto naturalíssimo, inferiram esses senhores que o sr. Antonio Soares preferira o mais fácil, quando a verdade é que elle escolheu o mais dificil. Dar expressão a uma physionomia, vibratilisar uma figura, vivificar um modelo até o ponto de o vermos em relevo dentro do encadrement, não é trabalho que permitta sortes de prestidigitação na technica. Depois, existe ainda esta difficuldade tremenda: fixar, sem exaggero de detalhes, o intimo, a psycologia, a sombra moral e pathologica do personagem e de forma que o seu exame permitta inclusivamente, mais tarde, entrever as características da sua epocha.
Quando um artista consciente se abalança a trabalhos d’estas exigencias, em vez de realisar o mais fácil (que é sempre o mais vistoso e o mais artificial) merece encómios e não diatribes. O Sr. Antonio Soares obteve o que não merecia. Até lhe chamaram com proposito deprimente – pintor de mundanidades. E acrescentaram solemnemente que ele possue uma sensibilidade morbida e que a sua pintura é sensual e perversa. Onde? Como? Porquê? Não é a pintura que é sensual e perversa é a mulher, as mulheres que serviram de modelo ao Sr. Antonio Soares. Mas de quem é a culpa? As mulheres que elle pintou são assim, aparte a estylisação que acompanha, inevitavelmente, a imaginação do artista criador de ambientes picturaes. E essa estylisação, que não implica com a verdade, junta com a intenção decorativa, constitue uma das notas mais originaes da pintura do Sr. Antonio Soares.
VICTOR FALCÃO

in Contemporanea nº.7 1923 


NOTA: o texto deste artigo está grafado tal qual aparece no texto original, de 1923; a exposição referenciada é a 3ª. Exposição Individual, que teve lugar na Casa Araújo & Bastos, inaugurada na última semana de Dezembro de 1922, que esteve patente até aos primeiros dias de Janeiro de 1923