Se eu quizesse comprometter certos
meninos-prodigios que ja tocam o cavaquinho da critica de Arte nas gazetas
encyclopedicas da nossa terra, perguntar-lhes-hia, deante da bisbilhoteira
familia portuguesa, se elles teem a noção, mesmo superficial, da differença que
existe entre – fazer pintura e alinhar adjectivos.
Só o desconhecimento impávido do padre-nosso da pintura, pode explicar a
desfaçatez com que elles se apresentam em publico, com as cuecas da
intelligencia desapertadas, a fazer batuque de phrases repenicadas sobre
tonalidades que não percebem, sobre processos que não existem e sobre pintores
que não comprehendem.
Não leio nunca meia columna de prosa
d’esses criticos de talagarça, incansaveis bordadores de adjectivos de missanga,
sem me lembrar, com uma certa piedade, dos incansaveis limpa-calhas dos
electricos. Com effeito, a vida dos primeiros tem uma caprichosa parecença com
a dos segundos. É a mesma monotonia no giro quotidiano, o mesmo cuidado no
exame das curvas, o mesmo culto pelas coisas superficiaes, o mesmo desejo de
não correr para não ser atropelado pela Civilisação… De maneira que, quando em
Portugal um d’esses raros artistas que não jogam o dominó ao fazer pintura
expõe os seus trabalhos mais recentes, é um regabofe para os fornecedores de
critica de Arte a domicilio.
N’esse dia, o armário dos
logares-comuns, lavados e passados a ferro, é remechido de lez-a-lez.
Verdadeiros satyros, os taes senhores apropriam-se inclusivamente das peças
mais intimas do volabulario do Sr. Julio Dantas. Põem brilhantina nos
substantivos, pomada amor nos adjectivos, um pouco de rouge nos adverbios de modo e pasta Couraça nos dentes das reticencias… E depois, muito satisfeitos,
deitam tudo em cima de um papel, misturam, confundem, desarranjam e atiram-nos
com a sua obra á cara,
provocadoramente, orgulhosamente, como se atirassem com pedras preciosas.
A final, tudo aquilo brilha, á força
de pomadas, mas toda a gente vê n’um apice, que não passa de pechisbeque e do
mais ordinário…
* * *
Vem isto a proposito do sapateado
estrambotico que certos bailarinos da critica fizeram em volta da exposição do
pintor Sr. Antonio Soares. Affeitos ao Nº.1 (Natureza Morta) e ao Nº.7 (Mulher
da fava rica) das exposições do costume; tendo a retina magnetisada pela
doçura de pastel de nata que ornamenta a paleta dos pintores officiaes – esses cavalheiros julgam-se obrigados a
fingir que advinham, que percebem, que sentem a Arte moderna em todas as suas
manifestações multiformes e labyrinticas. E zás! não estão com cerimonias.
Enfiam um par de castanholas na caneta e põem as palavras a dansar jotas e
sevilhanas a propósito da technica do pintor, da psychologia dos seus modelos,
da dimensão dos seus quadros e até das meias tintas que elle usa…
Emquanto em Portugal não estiver
estabelecido por lei que não basta possuir um bilhete de livre transito da policia
para se ter o direito de fazer critica d’arte, o publico não saberá quais são,
entre nós, os artistas verdadeiramente dotados. Ninguém lh’o diz nas gazetas –
com sinceridade e com convicção. Pois será, por acaso, elucidar o publico
chamar a um pintor que não sahiu de Rilhafoles, que não é estrábico, que não
toma cocaína, que aborrece o absinto, esta coisa tremenda – sensibilidade mórbida? Pois não será uma
palhaçada, d’essas que fazem rir pacóvios, chamar ao lápis preto, vulgar, Faber nº.2, de um desenhista – lápis côr de rosa? Pois será, por
ventura, fazer critica encher uma columna de jornal com pontos, virgulas,
pontos e virgulas e palavrinhas como estas – pinceladas multicores, manchas
admiráveis de intenção, assombrosa correcção de traço?
O Sr. Antonio Soares é a victima
mais recente das pachouchadas da critica. Treinado no desenho – desenha.
Pintor por temperamento – pinta. A razão fundamental da sua
arte é isto e não tem nada de mysterioso. Porque lhe attribuem os críticos ademanes
de fakir? Porque deslustram a sua arte tão limpida, considerando litteraria a sua pintura? Porque veem
intenções perversas, nervos excitados, caprichos de visão, détraquement, onde existe simplesmente raciocinio, observação,
alma, intelligencia e métier? Porque
se perturbam com as côres esbatidas nos quadros, se ellas nem são estranhas nem
abomináveis – se são, de facto, as côres exigidas
pelo décor imaginado e vivido pelo
artista? Porque veem complexidade e malabarismo onde ha unicamente verdade e belleza?
Como o impudor vai corrompendo todas
as camadas da sociedade portugueza! Como ha de ser difícil rehabilitar uma
nacionalidade atropelada, dia a dia, na sua vida intellectiva e moral, por essas
manadas de bucephalos traiçoeiros que p’ra’hi estadeiam a sua influencia! Elles
intromettem-se na politica, elles dominam na litteratura, elles pontificam na
critica de arte, sobranceiros, petulantes, apparatosos e… tremendamente inconscientes.
Tremendamente inconscientes, repito. Porque, se o não fossem, restringiriam a
sua acção, saberiam disfarçar a sua ignorancia, tentariam tornar menos offensivo
do senso-commum o seu culto ruidoso da banalidade. Mas ninguém tem já força
para os suster na sua marcha desenfreada. E elles seguem, seguem por’hi fóra, espezinhando
concepções d’arte, amachucando ideias de belleza, cortando cerce as expansões
mais rutilas da vida moderna – verdadeiros barbaros na exhibição do seu
encyclopedismo asnatico que só um paiz lymphatico como o nosso pode auctorisar
e fortalecer…
*
* *
A exposição de pintura de Antonio
Soares, compunha-se d’um certo numero de quadros, que não contei. Os jornaes
foram, porém, d’uma unanimidade generosa na fixação do numero – 30. Nem 29, nem
31. Trinta. Quando entrei na sala da Exposição olhei os quadros em conjuncto. Fiquei
encantado, humanamente encantado, sem que a minha sensibilidade, apesar de
bastante flexível, soffresse nenhum arrepio. Décor luminoso, levemente garrido, originando uma atmosphera translucida
e suave que me deixou o espirito n’um á vontade pouco frequente. Silhuetas
desencontradas, d’um colorido hipnotico, attrahentes, com movimento, desafiando
altivamente a luz. Linhas ondulantes, sensuaes, femininas, aqui, acolá, mais
além, multiplices, desembaraçadas e definitivas. Vida. Vibração. Claridade.
Nada de mysterioso nem de satanico…
Foi isto que vi n’um relance, a
distancia.
Ao abeirar-me dos quadros, a minha
primeira impressão não soffreu quebranto. Desconheço o ritual da louvaminha.
Tenho, portanto, o direito de escrever que não vi nada de grandioso nem de immortal.
O sr. Antonio Soares não possue, felizmente, a mania das grandezas. E também não
tem a velleidade de suppôr que a sua obra actual é definitiva e intangível. O
traço mais nítido da sua personalidade de artista é o seu desejo de ineditismo.
A sua pintura não crystallisou. A procura de tonalidades lucidas e vibrantes é
continua. Inferioridade? Bizarrismo? Inexperiência? O contrario d’isto tudo.
Pintar é dynamisar. Tudo tem expressão. Tudo tem, por conseguinte, movimento,
mesmo o que parece incorpóreo. O verdadeiro artista vive para a recherche d’esse movimento, tem a
ambição de surpreender o imponderavel.
Os críticos ignaros não perceberam
esta ambição em nenhum dos trabalhos do sr. Antonio Soares. Pois ella é bem
transparente! E também não presentiram que estavam em presença de um artista
invulgarmente intelligente e dotado de um excepcional temperamento de pintor.
Basta vêr o equilibrio perfeito das suas composições para se comprehender que o
artista não as improvisou, como um tocador de fado. Ha alli consciência,
intenção e recursos technicos. Ha principalmente –
intenção. E isto, para mim, é fundamental.
Um artista que sabe o que quer, embora o não realise completamente, é sempre um
valor positivo. Mais cedo ou mais tarde – na hora propria – o seu triumpho é certo e só poderá surprehender
os que julgam que a pintura, mesmo a de coisas fúteis, é uma futilidade.
*
* *
Uma das coisas mais irritantes para
os críticos foi o sr. Antonio Soares ter exposto unicamente cabeças de
mulheres. D’esse facto naturalíssimo, inferiram esses senhores que o sr.
Antonio Soares preferira o mais fácil, quando a verdade é que
elle escolheu o mais dificil. Dar expressão a uma physionomia, vibratilisar
uma figura, vivificar um modelo até o ponto de o vermos em relevo dentro do encadrement, não é trabalho que permitta
sortes de prestidigitação na technica. Depois, existe ainda esta difficuldade tremenda:
fixar, sem exaggero de detalhes, o intimo, a psycologia, a sombra moral e
pathologica do personagem e de forma que o seu exame permitta inclusivamente,
mais tarde, entrever as características da sua epocha.
Quando um artista consciente se
abalança a trabalhos d’estas exigencias, em vez de realisar o mais fácil (que é
sempre o mais vistoso e o mais artificial) merece encómios e não diatribes. O
Sr. Antonio Soares obteve o que não merecia. Até lhe chamaram com proposito deprimente
– pintor de mundanidades. E
acrescentaram solemnemente que ele possue uma sensibilidade morbida e que a sua
pintura é sensual e perversa. Onde? Como? Porquê? Não é a pintura que é sensual
e perversa – é a mulher, as mulheres que serviram
de modelo ao Sr. Antonio Soares. Mas de quem é a culpa? As mulheres que elle
pintou são assim, aparte a estylisação que acompanha, inevitavelmente, a
imaginação do artista criador de ambientes picturaes. E essa estylisação, que
não implica com a verdade, junta com a intenção decorativa, constitue uma das
notas mais originaes da pintura do Sr. Antonio Soares.
VICTOR FALCÃO
in Contemporanea nº.7 – 1923
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