Sem relacionar antecedentes nascidos
da estreita convivência com jornais e jornalistas nem atribuir ao acometimento
de algumas prozas e razoável número de bonecos publicados nos jornais, revistas
e livros, nem tão pouco ao exercício de redactor artístico, num transitório
diário matutino, a tendência e o gosto publicitário, mediado 1921, tudo me
atraía no jornalismo e me incitava a formar planos, embora ilusórios, de fundar
uma folha. Tinha então, além de vinte e sete anos, por companheiro e confidente
de semelhantes manias Afonso de Bragança, fraterno e muito saudoso amigo.
Em pleno Chiado, mal floria nos
escaparates a resplandecência das luzes eléctricas, pontuando na ladeira o
crepúsculo vespertino, era certo encontrá-lo melancólico algumas vezes, mas
sempre disposto a vagabundear comigo até de madrugada. Se também era certo,
antes de nos conhecermos certa tarde no Café Martinho, embirrar comigo, depois
até à derradeira despedida, indo ele para o Norte, nunca mais demos por tal. No
tropel dos nossos agitados sonhos e tantas discussões escasseava o tempo na
cogitação e na escolha das formas de acção mais verosímil e adequada aos
projectos de uma reforma estética e de costumes, que então decidíramos
empreender dispondo apenas da cumplicidade passiva do papel. E, claro está,
dentre as inúmeras que meditávamos, sempre um jornal nos parecia a melhor; um
jornal de feição mais literária, moderadamente anunciador consoante o
equilíbrio de pecunia aconselhasse, adornado de gravuras e menos pançudo no
fundo e na informação do que eram os órgãos da manhã, nessa época.
Quantas “maquettes” combinámos e
desenhei? Não me recordo. Entre tantas, um dia, trabalhávamos a que viria a ser
o “Diário de Lisboa”. O Afonso grita-me no Tavares a espantosa novidade: o Dr.
Joaquim Manso, seu tão afectuoso amigo e como nós devaneador de reformas e
novos jornais, paralelamente concebera o projecto duma gazeta e acolhera muito
satisfatoriamente as linhas gerais da que trabalhávamos, ao que parece,
bastante ajustadas às características da que ele próprio ideara.
O formato, principalmente,
merecera-lhe inteira aprovação. Mas faltava ainda a peça de efeito, a chamada
girandola final, que a seguir estrondeou nos meus ouvidos e quase me aniquilou
de pasmo! O nosso ilustre amigo Dr. Joaquim Manso constituíra já a empresa
editora, e desejava num próximo encontro aprazado para muitos breves dias
apreciar os desenhos originais do cabeçalho, o traçado das páginas, e ainda o
modelo de um cartaz destinado a anunciar ao público da capital e do resto do
País a próxima aparição do futuro “Diário de Lisboa”, o jornal das cinco horas!
Rodaram no quadrante vinte e cinco
dilatados anos. Controvérsias, dissídios, lutas de predomínio, bastante sofrimento
e algumas lágrimas. No coroamento uma temerosa guerra como nunca se viu. Ruinas
e luto.
Mas através de todas as vicissitudes
os artífices do sonho sempre são capazes de empreender novas arquitecturas à
simples metáfora, cavalgando geladas realidades. Pura geometria no espaço,
ainda com propósitos de aliança entre o céu e a terra. Forjados no segredo das
origens, novos “Zés do papel impresso”, se adoptar o diminutivo de um amigo
nosso, se subordinarão ao mesmíssimo fatalismo dos prelos. Sem o seu auxílio,
daquele meu amigo, visionário lúcido e talentosíssimo, de quem agora na rampa
do Chiado não diviso a estirada silhueta, não possuiríamos entretecida com
subtil e engenhoso humor, entre sentimental e sarcástico, a formosa esteira de
preciosidades desdobradas no “Chá das Cinco”, e as suas rotinas, na maior parte
perdidas por sómente as reter na memória.
No número dos raros que acarinharam
ainda no berço o “Diário de Lisboa”, pareceu-me apropositado evocar os
referidos sucessos. Mas seria injusto esquecer, sem uma única excepção, todos
os trabalhadores que com inegável talento, dedicação e saber, promoveram o seu
fortalecimento, com tanto êxito, como quando o corporizaram. Amigos todos que
muito prezo a cujo sentimento de companheirismo me conservarei sempre grato. Em
boa verdade, a minha insignificante interferência reduz-se praticamente a uma
simplória cimalha que sem o poderoso concurso do seu esforço e a superior
direcção do seu fundador e meu benevolente amigo Dr. Joaquim Manso, a quem
presto calorosa homenagem e felicito do coração, teria decerto abatido, e não
observaríamos hoje com fundo regozijo a rodagem em movimento do mostrador do
tempo, como no das rotativas a contagem dos exemplares, a soma esperada de mais
virtuosos aniversários.
Pintor
António Soares
in DIÁRIO DE LISBOA, 6 de Abril de 1946
Este artigo, escrito pelo próprio António Soares na comemoração dos 25 anos do diário vespertino lisboeta, relembra a génese do "Diário de Lisboa" , e presta uma sentida homenagem ao seu grande amigo, o jornalista Afonso de Bragança. Entende-se por isso a intransigente defesa que o Dr. Joaquim Manso sempre fez do cabeçalho do "Diario de Lisbôa". Em 1921, a grafia correcta era esta (sem acentuação obrigatória nas palavras exdrúxulas, e com acento circunflexo no "ô" de Lisboa) e ele não admitia que se alterasse um desenho do António Soares, com quem sempre manteve uma profunda amizade...
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